MEDIDA LIMINAR DE LEWANDOWSKI TEM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS, MAS RECONHECE OS ACORDOS INDIVIDUAIS DESDE A DATA DA SUA CELEBRAÇÃO!

CONFIRA A DECISÃO NA INTEGRA:

EMB.DECL. NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE 6.363 DISTRITO FEDERAL
RELATOR :MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
EMBTE.(S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
EMBDO.(A/S) :REDE SUSTENTABILIDADE
ADV.(A/S) :CASSIO DOS SANTOS ARAUJO E OUTRO(A/S)


Trata-se de embargos de declaração opostos pelo Advogado-Geral da União, que, em longa petição, sublinha possíveis problemas práticos advindos da liminar, além de apontar a ocorrência de contradições e omissões na decisão embargada, para ao final postular:

“(i) o reconhecimento de sua legitimidade recursal para oposição de embargos declaratórios no processo de controle de constitucionalidade, com o consequente recebimento do recurso;


(ii) [a] a reconsideração da decisão embargada, com o indeferimento do pedido de liminar ou, subsidiariamente, [b] a sua reforma, para que se afirme [b.1] a validade e legitimidade da produção imediata de efeitos para os acordos individuais celebrados na forma da MP nº 936/2020 (inclusive durante o período de 10 dias referido pelo seu artigo 11, § 4º), [b.2] ressalvada a possibilidade de adesão, por parte do empregado, a convenção/acordo coletivo posteriormente firmado;

(iii) a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, tendo em vista a aflitiva demora que pode advir para o acesso ao benefício emergencial pelos trabalhadores caso os acordos individuais dependam de homologação sindical para surtir efeitos; e


(iv) sejam, ao final, acolhidos os presentes embargos de declaração, para esclarecer a legitimidade da produção imediata de efeitos para os acordos individuais celebrados na forma da MP nº 936/2020 —inclusive durante o período de 10 dias referido pelo seu artigo 11, § 4º— ressalvada a possibilidade de posterior adesão a convenção/acordo coletivo pelo empregado.”


É o breve relatório. Decido.
Embora reconhecendo a legítima preocupação que move os subscritores destes embargos, entendo que devem ser rejeitados por ausência dos vícios especificados no art. 1.023 do Código de Processo Civil, ensejadores de seu acolhimento, motivo pelo qual, inclusive, dispenso a intimação da parte contrária.


Primeiramente, cumpre assentar, para que não pairem quaisquer incertezas, que a Medida Provisória 936/2020, contestada na presente ação, continua integralmente em vigor, eis que nenhum de seus dispositivos foi suspenso pela liminar concedida nestes autos. Todos eles permanecem hígidos, em particular os que dispõem sobre a percepção do benefício emergencial pelo trabalhador (art. 5º), a possibilidade de redução da jornada de trabalho e do salário (art. 7º, VIII) e a suspensão temporária do contrato laboral (art. 8º), dentre outros.


É que os atos do poder público, como se sabe, gozam de presunção de constitucionalidade e legalidade, enquanto não forem desconstituídos por decisão judicial. Por isso, a MP atacada, salvo naquele dispositivo que passou por uma interpretação conforme à Constituição – a rigor, uma suplementação necessária para que pudesse fazer um mínimo de sentido em face do Texto Magno – incide plenamente sobre as relações de trabalho em andamento, desde a data em que foi editada.


Tendo em conta que a cautelar apenas se limitou a conformar o art. 11, § 4º, da Medida Provisória 936/2020 ao que estabelecem os arts. 7º, VI, e 8º, VI, da Constituição, outra conclusão não é possível se não aquela segundo a qual os eventuais acordos individuais já celebrados – e ainda por firmar – entre empregadores e empregados produzem efeitos imediatos, a partir de sua assinatura pelas partes, inclusive e especialmente para os fins de pagamento do benefício emergencial no prazo estipulado, ressalvada a superveniência de negociação coletiva que venha a modificá-los, no todo ou em parte.


Seria impensável conceber que o Presidente da República – considerado o elevado discernimento que o exercício do cargo pressupõe – pretendesse, com a Medida Provisória, que os sindicatos, ao receberem a comunicação dos acordos individuais, simplesmente os arquivassem, pois isso contrariaria a própria razão de ser dessas entidades, as quais, por sua reconhecida relevância social, mereceram destacado tratamento constitucional. À toda a evidência, não seria imaginável que os constituintes de 1988 lhes tivessem reservado o modestíssimo papel de meros arquivistas de contratos de trabalho.


Não fosse isso, adotando uma visão mais realista – ou quiçá mais pessimista –, nada impediria que os sindicatos guardassem a informação recebida dos empregadores para, num momento futuro, contestar os acordos individuais já celebrados perante a Justiça, dentro do prazo prescricional dos créditos trabalhistas (5 anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de 2 anos após a extinção do contrato de trabalho, a teor do art. 7º, XXIX, da Constituição).

Por essa exata razão é que a alternativa de manter intacto o art. 11, § 4º, da Medida Provisória 936/2020, como se encontra redigido, sem qualquer temperamento, mostrava-se – como ainda se mostra – extremamente problemática, tal a insegurança jurídica que levaria aos patrões e empregados.


Qual seria, então, a real intenção do Chefe do Executivo ao determinar a comunicação dos acordos individuais pelo empregador ao respectivo sindicato, no prazo de 10 dias? Bem sopesadas as coisas, outra não poderia ser a conclusão a não ser a de que a comunicação exigida na MP foi cogitada para que o sindicato cumpra o seu múnus constitucional de fiscalizar a estrita observância dos direitos dos trabalhadores por parte dos patrões.


Essa suposição se fortalece mais ainda porque os prazos estabelecidos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei 5.452/1943), o qual regula as Convenções Coletivas, foram reduzidos pela metade pelo art. 17, III, da mencionada Medida Provisória, em uma eloquente demonstração de que o Governo antevia, ao menos implicitamente, uma possível deflagração de negociações coletivas, a partir da comunicação aos sindicatos.


Bem por isso, a decisão cautelar ora embargada buscou colmatar a lacuna identificada no texto da MP, esclarecendo que a comunicação ao sindicato permitirá que este, querendo, questione eventual abuso ou excesso praticado pelo empregador, como, por exemplo, no caso de determinada atividade econômica não ter sido afetada pela pandemia.


A comunicação ao sindicato, não há dúvida, prestigia o diálogo entre todos os atores sociais envolvidos na crise econômica resultante da pandemia para que seja superada de forma consensual, segundo o modelo tripartite recomendado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. E, como bônus adicional, permite-se que os acordos individuais sejam supervisionados pelos sindicatos, para que possam, caso vislumbrem algum prejuízo para os empregados, deflagrar a negociação coletiva, prevista nos já citados arts. 7º, VI, e 8º, VI, da Carta da República.


A interpretação conforme à Constituição adotada na decisão embargada atende também à recentíssima Resolução 1/2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, intitulada “Pandemia e Direitos Humanos nas Américas”, que exorta os Estados-membros, em seu item 5, a assegurarem o respeito aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais de sua população (Resolução 1/2020, de 10 de abril de 2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos encontra-se disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 11 de abr. de 2020).

E mais: recomenda que os Estados-membros da CIDH garantam rendas e meios de subsistência a todos os trabalhadores, priorizando a proteção dos empregos, dos salários, da liberdade de associação e da negociação coletiva, bem como outros direitos, laborais e sindicais.


Vale ressaltar que, embora se compreenda a insistência governamental e de certos setores econômicos em acelerar os acordos individuais, superestimando supostas consequências deletérias decorrentes da liminar concedida, em especial o “engessamento” das negociações, o fato é que constituiria precedente perigosíssimo afastar a vigência de normas constitucionais asseguradoras de direitos e garantias fundamentais, diante do momento de calamidade pública pelo qual passamos. Isso só poderia ocorrer – e mesmo assim em escala limitada e sob supervisão do Congresso Nacional – durante a decretação dos Estados de Defesa ou de Sítio, escrupulosamente delimitados nos art. 136 e 137 da Lei Maior.


Ora, a experiência tem demonstrado que justamente nos momentos de adversidade é que se deve conferir a máxima efetividade às normas constitucionais, sob pena de graves e, não raro, irrecuperáveis retrocessos.


De forma tristemente recorrente, a história da humanidade tem revelado que, precisamente nessas ocasiões, surge a tentação de suprimir – antes mesmo de quaisquer outras providências – direitos arduamente conquistados ao longo de lutas multisseculares. Primeiro, direitos coletivos, depois sociais e, por fim, individuais. Na sequência, mergulhasse no caos!


A Constituição – é claro – não foi pensada para vigorar apenas em momentos de bonança. Ao contrário, o seu fiel cumprimento se faz ainda mais necessário em situações de crise, nas quais, na feliz metáfora de Jon Elster, ela serve como o mastro a que se prendeu Ulisses para que não se perdesse em meio ao canto das sereias, pois representa a derradeira barreira de proteção dos valores básicos da sociedade contra paixões ou interesses de uma maioria ocasional (Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: UNESP, 2009).

De resto, a redução de salários, que é vista como panaceia para resolver as dificuldades econômicas pelas quais passamos atualmente, já se encontra prevista na vigente Constituição, sendo naturalmente vocacionada para os momentos de crise, até porque, em situações normais, a perda de remuneração não é esperada nem desejada. Para que isso aconteça – a bem da segurança de todos os envolvidos – o Texto Magno previu a participação dos sindicatos nas negociações para a proteção daqueles – invariavelmente os mais débeis na relação de trabalho – que sofrerão uma diminuição de rendimentos.


Nesse passo, vale registrar que não colhe o argumento, amplamente difundido na mídia, de que a MP vergastada estaria mantendo intacto o valor da hora trabalhada, motivo pelo qual inexistiria verdadeira redução de salário. Trata-se de mais uma falácia sem qualquer consistência, porque a própria Constituição garante, em seu art. 6º, IV, um salário mínimo para o trabalhador, “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, as quais só são satisfeitas – se de fato o podem ser – considerada a remuneração como um todo.


Contratempos que possam eventualmente advir da participação dos sindicatos nas negociações não têm o condão de sensibilizar o intérprete do Texto Constitucional, voltado, por dever de ofício, a preservar os valores superiores de convivência social nele abrigados. Não é demais insistir que a própria Medida Provisória aqui contestada é que instituiu a obrigação de comunicar os acordos individuais ao sindicato. E dessa comunicação – que não pode ser tida como simples figura retórica – há de extrair-se algum efeito!


Eventuais dificuldades em identificar ou contatar os sindicatos para comunicá-los – como muitos displicentemente vêm alegando – não justifica o descumprimento da expressa determinação contida no ato presidencial impugnado. Cabe ao empregador adotar todas as providências ao seu alcance para localizar o sindicato, a federação ou a confederação apta a receber a comunicação. E aqui, vale sublinhar que uma das possíveis consequências jurídicas da falta de comunicação do empregador à respectiva entidade sindical, no prazo de 10 dias, estabelecido pela MP, será a perda da validade do acordo individual por descumprimento de formalidade essencial.


É de se notar, ademais, que o esvaziamento do poder dos sindicatos, ensejado por modificações legislativas recentes, não pode levar – particularmente nessa fase crítica pela qual passa o País – a um enfraquecimento ainda maior dessas agremiações. Não há, ao menos sob a égide da ordem legal vigente, nenhuma possibilidade de excluí-las das negociações trabalhistas, diante da cristalina redação do art. 8º III, da Constituição, segundo a qual, “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”, sob pena de mergulharmos num ciclo vicioso de progressiva e acelerada retirada das salvaguardas da classe trabalhadora.


A decisão embargada, à toda a evidência, não acarretou qualquer insegurança jurídica. Pelo contrário, buscou emprestar confiabilidade aos acordos individuais, sobretudo porque apenas fez valer o disposto na Constituição quanto ao modo de emprestar validade às pretendidas reduções de salários e jornadas de trabalho.


Insista-se mais uma vez: nada impediria, a prevalecer a fórmula da MP 936/2020, tal como originalmente redigida, que os acordos individuais, depois de celebrados, fossem contestados em juízo, ao alvedrio dos sindicatos, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição, agasalhado no art. 5º, XXXV, do Texto Magno.


Diante de todo o exposto, esclareço, para afastar quaisquer dúvidas, e sem que tal implique em modificação da decisão embargada, que são válidos e legítimos os acordos individuais celebrados na forma da MP 936/2020, os quais produzem efeitos imediatos, valendo não só no prazo de 10 dias previsto para a comunicação ao sindicato, como também nos prazos estabelecidos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho, agora reduzidos pela metade pelo art. 17, III, daquele ato presidencial.


Ressalvo, contudo, a possibilidade de adesão, por parte do empregado, à convenção ou acordo coletivo posteriormente firmados, os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem, observando-se o princípio da norma mais favorável. Na inércia do sindicato, subsistirão integralmente os acordos individuais tal como pactuados originalmente pelas partes.


Em conclusão, conheço do recurso, nos termos do art. 1.024, § 2º, do CPC, admitindo a legitimidade do Advogado-Geral da União para opor os embargos declaratórios, porém os rejeito, por entender que não se encontram presentes os vícios apontados, sem prejuízo dos esclarecimentos supra explicitados.

Publique-se.
Brasília, 13 de abril de 2020.
Ministro Ricardo Lewandowski
Relator